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sábado, 29 de setembro de 2012

A Lenda Áurea


Não existe algo como um “cânon dos santos”, no sentido de um único registro de todos os homens e mulheres que, desde os primeiros tempos, tenham sido publicamente honrados pela Igreja Católica Apostólica Romana. Seus nomes devem ser listados em inúmeros calendários eclesiásticos, sejam os antigos ou modernos, nas compilações conhecidas no Ocidente e no Oriente como martirológios, menológios, ous sinaxários, e em outras fontes. Tal lista de nomes assim obtido é de grande quantidade, e é chamada de MARTIROLÓGIO ROMANO, onde contém cerca de quatro mil e quinhentos nomes, mas é bastante incompleto.


Outros escritos antigos sobre a vida dos santos são de tipos diferentes e tem valor histórico bastante variado, ou mesmo duvidoso. Vão desde biografias escritas por contemporâneos ou mesmo por discípulos, até obras posteriores bem cheias de erros, omissões, interpolações, e “retoques” fantásticos. Logo, a pesquisada vida dos primeiros santos esta envolvida em dificuldades especiais. Existem aquelas que são enfrentadas por outros historiadores e biógrafos, escassez e precariedade dos registros, incertezas e contradições, interpretações conflitantes, e assim por diante. Somada a estas, há em particular a “seletividade” do material disponível.



Freqüentemente, os hagiógrafos só estavam interessados nos aspectos diretamente “religiosos” da vida do santo, e a biografia se transformava em uma simples lista de milagres e feitos fantásticos até, de flagelos físicos voluntários, ou no caso dos mártires, numa seqüência de tormentos indescritíveis, tormentos estes tão intensos que bastariam para destruir o corpo humano uma única vez. Na imensa literatura hagiográfica dos primeiros tempos, o fato histórico e um alto grau de autenticidade são elementos raríssimos. Vamos a encontrar sempre os mitos, o folclore, as lendas ou as ficções românticas e edificantes, que não difere de muitas novelas históricas.



Estas “vidas lendárias” tornaram-se uma forma literária reconhecida no gênero, que se propunha honrar os santos católicos, exaltar suas virtudes e ações, inspirar mais o ânimo e fibra entre os cristãos mais apáticos e desencorajados.



Em plena Idade Média, o frade dominicano Jacques de Voragine quis escrever uma obra sem precedentes: a narrativa da vida dos 180 santos mais conhecidos até sua época. Ele o fez em latim popular, e o objetivo era claro: o clero necessitava de leitura acessível que o inspirasse em suas pregações, apresentando exemplos de vida que corriam de boca em boca somente através das tradições populares. O resultado de tal iniciativa foi impressionante: em alguns anos a obra tornou-se, juntamente com a Bíblia, o livro mais copiado, lido, escutado, comentado e parafraseado nos países da Cristandade. A partir de 1264 se dedicou a escrever uma enxundiosa compilação das vidas e dos milagres dos santos, obra que gozou de grande prestígio e popularidade durante séculos e que depois foi acrescentada por outros autores.


Em 1265, Jacques de Voragine foi eleito Provincial de sua ordem na Lombardia. Nesse período teve a honra de ser o superior de Santo Tomás de Aquino. Em 1292, foi nomeado Arcebispo de Gênova, cargo que ocupou até a sua morte, aos 70 anos, em 1298.



No século XIII, quando instituições como as corporações de ofício estavam no seu auge e, ao mesmo tempo, floresciam as primeiras universidades, Voragine quis oferecer uma dádiva ao povo, ocupado em construir igrejas e catedrais, ávido por conhecer a verdadeira fé. Escreveu ele com fervor e entusiasmo uma história, retraçando todos os conhecimentos e lendas acumulados com o passar dos séculos, sobre a vida dos santos. Nasceu assim o primeiro livro religioso realmente acessível a todos: a Legenda Sanctorum, ou “o que deve ser lido dos santos”. Em pouco tempo a obra recebeu o nome de Légende Dorée — Lenda Áurea, porque, diziam então, seu conteúdo era de ouro.






O livro, reproduzido em mais de 10 mil manuscritos, narra com uma força surpreendente as incríveis e maravilhosas histórias dos santos, seus milagres e martírios, recuando até os primeiros anos da Cristandade medieval e abarcando os lugares mais longínquos e recônditos do mundo de então. O religioso dominicano evoca também as principais festas do calendário litúrgico e mariais.


Outro efeito, contudo, permitiu que o livro alcançasse ainda mais importância. O texto maravilhou os artistas, que dele prazerosamente se apoderaram desde os primórdios da Renascença italiana, tornando-o referência inconteste de todos os pintores, que ali encontravam fonte inesgotável de inspiração. Isso ocorreu com os maiores artistas, tais como Giotto, Duccio, Fra Angelico, Simone Martini, Piero della Francesca, Masaccio, Masolino, Pietro Lorenzetti, Ambroggio etc. Mas também outros menos conhecidos, embora não menos inspirados, empregaram seu gênio para exaltar cenas da vida de santos e enriquecer as igrejas, conventos e mosteiros com afrescos, retábulos, vitrais e políticos.






Se uma centena dessas reproduções artísticas são universalmente conhecidas, pode-se dizer, entretanto, que mais de um terço delas são totalmente inéditas: afrescos escondidos no fundo de conventos, retábulos descobertos em igrejas desconhecidas, seqüências espalhadas em diversos museus, ou mesmo em coleções privadas. A conjunção do livro do Beato Voragine com as obras de arte que ele suscitou foi uma agradável surpresa, e realçou a beleza extraordinária, cheia de sabedoria e de maravilhoso da Idade Média.


O Padre Hipólito Delehaye, o mais crítico dentre os hagiógrafos, escreveu na Lenda Áurea: “Confesso que o que estou lendo, me é muitas vezes difícil conter o sorriso. Mas é um sorriso simpático e amigável, que não perturba a resposta religiosa despertada pela descrição da bondade e dos feitos heróicos dos santos”. As narrativas lendárias tem esse valor: são a evidência daquilo que o povo “acreditava” quando as lendas tomaram forma. Como afirmou Sir Arthur Quiller-Couch, escrevendo em um outro contexto, “uma lenda, por mais que seja um exagero em realação aos fatos, é um fato em si, atestando a crença”. Naturalmente, não devemos subestimar a sofisticação mental das pessoas letradas.






NO INÍCIO, a lenda era um relato sobre um mártir, ou outro santo, que deveria ter lido publicamente no dia de sua comemoração O conteúdo podia ser factual, imaginário ou uma mistura dos dois. Com o passar do tempo,a palavra adquiriu, na linguagem comum, um significado completamente desfavorável, do ponto de vista histórico. É nesse sentido que ela é usada na Lenda Áurea, significando uma narrativa, ou parte de uma narrativa, que não é historicamente verdadeira ou que, pelo menos, é duvidosa.


De nenhuma outra categoria de pessoas que já passaram por este “vale de lágrimas”, se pode dizer com tanta verdade que “tendo morrido, ainda falam”. A Vida destes santos, portanto, merecem atenção, simpatia e compreensão de todos – cristãos praticantes ou não – que se consideram humanistas e podem dizer, como o escritor romano Terêncio: “Sou um homem, e nada do que é humano me é indiferente”.


Não faz parte do escopo de uma introdução discutir assuntos como milagres em si ou na relação que guardam com as narrativas sobre os santos, nem examinar visões religiosas e outros fenômenos tão frequentemente ligados a vida dos santos contados na Lenda Áurea, ou ainda buscar certos costumes, tais como a ênfase dada por muitos escritores ao asceticismo, verdadeiro ou suposto. O mesmo se aplica aos vários aspectos dos cultos públicos dos santos, suas relíquias, seus templos, e as peregrinações a esses lugares, a dedicação as igrejas em sua homenagem, sua escolha como patronos celestiais, sua freqüente e variada representação em pinturas e esculturas (sem falar na poesia, na música, no cinema e no teatro).Cada um desses aspectos é um assunto com caráter próprio que requer tratamento em separado.

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