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quarta-feira, 31 de julho de 2013

† Vida e obras de Santo Inácio de Loyola


Padre J. Ramón F. de la Cigoña SJ

                                                  

Conhecer o contexto das pessoas é fundamental para entendê-las por dentro e não se assustar com o que expressam. Espaço e tempo, geografia e cultura dominante configuram o mais profundo das pessoas. Corpo e alma, emoção e sensibilidade são determinados, muitas vezes, pelo contexto que nos rodeia. Íñigo (primeiro nome de Inácio)López de Loyola não fugiu dessa regra universal.

Temos raízes profundas afincadas na terra em que nascemos e vivemos. Dela extraímos não só a vida, mas também o gosto e o desgosto que sentimos. A história do nosso povo, da própria família, os trunfos e fracassos, medos e pecados são como personagens vivos que nos habitam.

O pequeno rio Urola corre pertinho da Casa-torre dos Loyolas. As macieiras e os castanheiros são árvores freqüentes daquela região. Duas montanhas, uma delas majestosa, o Izarraitz, escondem este lugar entre as pequenas localidades de Azpeitia e Azcoitia. Lá, os Loyolas foram batizados na fé católica.

Há fatos banais que são talvez vividos distorcidamente porque assim foram sentidos e experimentados. Um exemplo? Oorgulho de casta (país, família, própria pessoa) é uma das vertentes radicais do modo natural de ser de Íñigo de Loyola. Esse jovem vive num vale paradisíaco. Sua Casa-torre, situada sobre um pequeno relevo, estava rodeada por um bosque frondoso. Uma árvore maior assinalava o lugar da casa.

Nascer num vale, com montanhas que cortam o horizonte, significa viver num mundo limitado e ensimesmado. Não é fácil subir, ir além e olhar para longe dos próprios horizontes.


O início do século XVI foi marcado por algumas características que o fazem, de algum modo, parecido com o nosso. É o fim da Idade Média e o começo do Renascimento. Falava-se muito em “decadência”. Os espíritos mais lúcidos tinham a impressão de presenciar o fim de uma época e o nascimento de outra. E de fato, assim era. As velhas instituições feudais entravam em crise. Os conceitos de nobreza, cavalheirismo, vassalagem e serviço a um único senhor, rei ou imperador estavam desgastados pelo uso e abuso.

Também hoje falamos em crise das instituições e da cultura. Muitos não levam mais a sério as leis constituídas, as normas estabelecidas e, menos ainda, as tradições familiares. A expressão “dou-lhe a minha palavra!” não serve mais para nada! Hoje precisamos de documentos, escritos e até carimbos do cartório para crer na palavra dada. E o manter “o devido respeito às senhoras e senhoritas” faz sorrir sorrateiramente as nossas próprias meninas. As idéias e os ideais de autoridade, obrigação e dever estão um tanto desgastados.

No tempo de Inácio, as descobertas geográficas (Vasco da Gama, Cristóvão Colombo...), fruto de grandes investimentos econômicos, tinham ampliado sensivelmente as fronteiras do mundo conhecido. A invenção da imprensa facilitou a difusão da cultura, até então privilégio das cortes e mosteiros.

Hoje, o desenvolvimento técnico-científico reduziu as distâncias do nosso planeta, descortinando possibilidades de viagens espaciais e extraterrestres. A comunicação entre os homens cresceu vertiginosamente por meio do telefone, rádio, TV e Internet.... É a revolução da informática.

No tempo de Inácio, havia um grande desejo de reformas. Era preciso adaptar as velhas instituições medievais aos novos tempos. Falava-se muito em “renascer” (era o começo do “Renascimento”), “humanismo” (voltar aos autores clássicos greco-romanos)... O mundo moderno vivia seu alvorecer. Começava a despontar o “sujeito” com seus valores e pontos de vista próprios.

Também hoje, no início de um novo milênio, sentimos desejos de renovação interior, mudança de paradigmas e transformação de estruturas. Parece como se estivéssemos redescobrindo a importância vital do sujeito (“psicologia”) e do seu entorno (“ecologia”); exaltamos os valores primitivos (povos indígenas, culturas minoritárias, religiosidade popular...) e as particularidades de grupos e de sub-culturas. Um novo mundo renasce, embora não vislumbramos, ainda, como ele será. Sentimos dificuldade de adaptar-nos ao velho; mas não conseguimos habituar-nos ao novo.


E no meio de tudo isso, como fica a família?Ninguém é uma ilha! O código genético recebido dos pais e as marcas deixadas pelos nossos antepassados são de grande importância. Em qualquer biografia é mais interessante a “sintonia espiritual”do que as coincidências cronológicas, a não ser que sejam lidas como “teo-incidências”. Sentir-se amado e acolhido são experiências marcantes e condicionantes de toda uma caminhada.

O velho brasão heráldico dos Oñaz e Loyola, bem exposto na entrada principal da casa, com dois lobos (= López!), simboliza ousadia, agressividade e poder dessa família. Eles, como lobos vorazes, eram capazes de entrar até no mais íntimo dos lares vizinhos para roubar a comida que, com tanto trabalho, as pessoas conseguiram. Íñigo não só nasceu numa família violenta como também viveu num mundo isolado da civilização urbana. Isolado, não tanto pelo espaço físico, como pela distância imposta pela sua linhagem.

Os Loyolas não tinham título de nobreza, mas pertenciam às famílias poderosas daquele lugar.

Entre as famílias Oñaz e Loyola, havia uma rivalidade impetuosa que se traduzia em grupos opostos: os oñacinos e os gamboínos. Essa intriga levou quase a uma guerra civil e a graves e inumeráveis violências. O poder central (Reis Católicos) teve que entrar nessa disputa para aliviar e diminuir essa rivalidade. O avô de Íñigo foi castigado sendo exilado da sua casa, enquanto essa perdia suas defesas e o piso superior era derrubado.

Pouco conhecemos da família de Inácio López de Loyola. Da sua mãe, Íñigo nunca disse nada. Morreu no parto? Pouco depois? Sabemos que dona Marina teve 13 filhos e Íñigo era o caçula. Sua ama-de-leite, Maria Garín, afirmou, com certeza e energicamente, no processo de beatificação e contra o parecer de toda a Companhia nascente (e até do próprio Inácio na sua Autobiografia), que o “pai Inácio tinha alguns anos a mais de quantos ele mesmo cria ter”.

A morte prematura de D. Marina pertence às raízes escondidas da personalidade de Íñigo. A falta da mãe, nos primeiros anos da vida, implica a privação de certas experiências e funções: proteção, liberdade, ordem, segurança... É a mãe quem transmite modelos e inspira confiança; sua ausência pode provocar, dizem os estudiosos, insuficiente crescimento corporal. Sabemos que Íñigo, contrariando a média de altura dos bascos, era baixinho. Ele tinha 1,58m. de altura. Um padre cisterciense o chamou carinhosamente, numa homilia, "homenzinho de Deus".

A figura materna foi suprida, positivamente, por outras figuras femininas: a da mãe de leite, a da sua ótima cunhada Madalena de Araóz e a daquelas outras piedosas mulheres que mais tarde conhecerá em Manresa. A uma delas chamará, afetuosamente, de "mãe".


Íñigo não conheceu os avós, e seu pai, Beltrão, morreu quando ele tinha apenas 16 anos.

Outro traço que certamente marcou a psicologia de Íñigo foi o de ser o caçula . Desde a data de casamento dos pais até o seu nascimento, passaram 24 anos e nasceram 12 irmãos.

Quais os modelos de vida que Íñigo assimilou nessa sua família? O ambiente era, naturalmente, cristão, com as típicas sombras, próprias da época. Uma coisa é certa: Íñigo não nasceu santo, nem duma família santa.

Seus irmãos? João, o primogênito e Beltrão, o terceiro, morreram guerreando em Nápoles (1496). Hernando veio para América fazer dinheiro e aqui desapareceu. Pedro se tornou sacerdote da paróquia de Azpeitia e, contudo, tinha duas filhas! Suas irmãs? Juaniza, Madalena, Petronila e Sancha... O pai deixou, também, dois filhos bastardos.

Quando o corregedor da Província quis processar Íñigo e seu irmão padre "por delitos enormes..." acontecidos nos dias de Carnaval do ano de 1515, ele fugiu para Loyola e invocou sua condição de "clérigo". Apelou ao tribunal eclesiástico para escapar da justiça ordinária. Contudo, o corregedor manteve sua acusação afirmando que Íñigo jamais usara veste de clérigo e que, pelo contrário, andava, freqüentemente, armado, tinha cabelos cumpridos, roupas vistosas e um gorro vermelho típico do bando dos "oñacinos". A "tonsura clerical", recebida prematuramente um dia, era uma forma de manter privilégios indevidos numa sociedade onde a maioria das pessoas carecia deles.

Seu pai, certamente, ficou satisfeito quando viu partir Íñigo para o palácio real de Arévalo. Viveria com a família do ministro do Tesouro Real João Velázquez de Cuéllar,casado com Dona Maria de Velasco, parente dos Loyolas. Lá, passou os anos da sua juventude (1506-1517) e se fez homem, no meio do luxo e da vaidade da corte do Rei da Espanha.

3. Igreja, santa e pecadora. E a Igreja daquele tempo, como era? A Igreja não era alheia à profunda crise experimentada pela sociedade e pelas pessoas; participava, também, dessa mesma decadência. Precisava de renovação; sair do seu nominalismo e legalismo.

Foi o frade agostiniano Lutero (1483-1546), mais moço que Inácio, quem desencadeou a Reforma Protestante. Foram ventos impetuosos que sacudiram e implodiram a cristandade a partir da Alemanha.

Também em nossos dias, a Igreja está em processo de reforma, crescimento e atualização das suas estruturas. O desejo de viver e irradiar a fé cristã, no contexto de um mundo secularizado e “pós-moderno”, exige dos cristãos maior coerência entre fé e vida para poder inculturar a própria fé numa sociedade irreversivelmente pluralista.

Se, por uma lado cresce, hoje, o desejo de unidade entre as diversas Igrejas cristãs(ecumenismo), por outro, o fenômeno do fundamentalismo dos novos movimentos religiosos divide, cada vez mais, os cristãos. O Concílio Vaticano II e as Conferencias Gerais do Episcopado Latino-americano (Rio de Janeiro/1955, Medellim/1968, Puebla/1979, Santo Domingo/1992 e Aparecida/2007) orientaram decididamente os rumos do catolicismo contemporâneo.

No meio disso tudo, da geografia afastada, da história familiar violenta e complexa, surge uma pergunta: “que vai farás da tua vida, Íñigo de Loyola?” Entre tantos condicionamentos negativos, como refazer positivamente a vida?

Antes de ser Inácio, foi Íñigo (ignis = fogo!). Íñigo é o nome do velho homem (violento, apaixonado e mulherengo!); Inácio, pelo contrário, é o nome do novo homem (humilde, serviçal e fraterno!).


Inácio é um convertido e por isso mesmo radical! Deus entrou na sua vida muito mais fundo do que aquela bala de bombarda na sua carne, quando ferido na bendita batalha de Pamplona. Quando ele caiu, ruíram sonhos e fantasias mundanas. Descobriu que na sua alma havia feridas mais profundas e doídas do que aquelas de seu corpo. Experimentou sua fraqueza e também a bondade daqueles que dele cuidavam. Aos poucos, foi percebendo que Deus o poupara e começou a brotar nele um sentimento profundo de gratidão.

Uma vez curado das feridas da guerra de Pamplona, retirou-se a Manresa, pequena localidade da terra Catalã, para confrontar toda sua vida passada com a palavra de Deus. Precisava fazer isso, passar por essa experiência durante quase 9 meses. Foi um segundo nascimento! Sem o saber, iniciara os Exercícios Espirituais (EE), marca registrada da sua espiritualidade. Os EE são uma autobiografia pedagógica, salvíficamente escrita;“modo e ordem” que cada um tem de sentir e saborear a descoberta do “sentido da história”própria.

Inácio experimenta o grande amor de Deus que o chama para ser companheiro do seu Filho. Eis sua grande experiência: Deus não só o salva da sua condenação (e autocondenação!), mas misericordiosamente o chama para uma missão. “Salvando-me me chamavas; chamando-me me salvavas!...” E, manco como estava, colocou-se, feliz, a caminho e no seguimento de Jesus!

Inácio de Loyola foi um homem de Deus, participou plenamente das lutas, alegrias e tristezas dos homens da sua época. Contemplou o mundo de outrora com olhos de fé, com uma vontade imensa de colaborar com o Projeto de Deus de transformar a realidade de pecado em plenitude do Reino. Deixou-se conduzir pela Palavra interior que o interpelava e convidava a ir sempre mais fundo na vivência do Evangelho. E assim foi longe. Percorrerá o mundo com os companheiros que ele mesmo formara. Assim, viajará pela Europa inteira com Pedro Fabro e João Coduri; chegará às praias da Índia e do Japão nos pés de Francisco Xavier; e ao Brasil, com os padres Nóbrega e Anchieta. Ele desejava que o mundo todo participasse, conscientemente, da salvação oferecida, gratuitamente, em Jesus Cristo!


 Escritos de Santo Inácio de Loyola.

E então, que coisas pregais?” perguntou o frade dominicano da Igreja Santo Estêvão de Salamanca.

Nós não pregamos; apenas falamos com algumas pessoas, familiarmente, sobre as coisas de Deus, conversando, depois do almoço, com algumas pessoas que nos chamam.
Quais as coisas de Deus que pregais, pois é isto que queríamos saber, disse o frade.
Falamos ora de uma virtude ora de outra e sempre louvando; ora de um vício ora de outro e aqui repreendendo.
Vós não sois letrados e falais de virtudes e de vícios; ora, destas coisas só se pode falar de duas maneiras: ou por letras ou pelo espírito Santo. Não por letras, ergo pelo Espírito Santo. E é este ponto do Espírito Santo que gostaríamos de saber.
A pesar do silogismo, é falso dizer que só podem falar de Deus os letrados ou os iluminados.Ínhigo não era ingênuo. Parou, refletiu e não gostou desse tipo de argumentação. E não quis falar mais sobre esse assunto. Ficou lá três dias e, depois, foi levado para uma cadeia comum.

O Vigário do Bispo veio examiná-lo e Ínhigo entregou-lhe o que mais amava neste mundo: os Exercícios Espirituais, para que os examinassem. Os juizes não se atreveram a condenar nada e lhe pediram para não determinar o que é pecado mortal ou venial... Ínhigo “percebeu que lhe fechavam a boca para que não ajudassem ao próximo...” Ninguém lhe fechava a boca para falar de Deus, mas para falar de Deus para ajudar o próximo.

Inácio nunca foi um escritor e, menos ainda, um literato. Ele era um pensador! Alguém definiu o povo basco como pessoas "de poucas palavras e de grandes obras". Em Inácio, as obras eram suas palavras! Como todos os de sua região, tinha enorme respeito à palavra dada, longamente meditada, antes de ser expressa. Sabia que a palavra definia as pessoas. Por isso, por meio da "palavra" falada, escrita e concretizada, realizou seu maior apostolado.

O povo basco, mais que intelectual ou contemplativo,é ativo. Inácio, bem antes da sua conversão, pensava em "fazer grandes coisas pela dama dos seus pensamentos". Após sua conversão, traduziu esse sentimento do "fazer" por um outro: "ajudar o próximo". Nasce, assim, seu fundamental ideal de "serviço" que outra coisa não é do que a sublimação e enfoque positivo daquele “querer fazer".



Quais os escritos de Inácio?

1. Antes da sua conversão e provavelmente no Castelo de Arévalo, Inácio escreveu um poema em honra de São Pedro. Esse escrito se perdeu.

2. Em Loyola, “pôs-se a escrever um livro com muita diligência... O livro teve 300 folhas... Traçava as palavras de Cristo com tinta vermelha; as de Nossa Senhora, com tinta azul. O papel era liso e com linhas, e a letra caligráfica, pois era bom escrevente”. Por desgraça, esse escrito também se perdeu.

3. O Pe. Laínez, companheiro do santo, afirma que houve um tempo em que Inácio se pôs a escrever um tratado sobre a Santíssima Trindade. Não sabemos mais nada sobre esse escrito.

4. Os “Exercícios Espirituais” éo livro que mais influência teve na transformação de pessoas e estruturas, nas mais diversas partes do mundo. Esse livrinho, não mais do que 200 pequenas páginas, apresenta uma metodologia própria que permite percorrer um caminho interior que vai do “próprio eu” para um “eu” mais livre, profundo e comprometido. Em etapas diferentes, chamadas de “Semanas”, o exercitante toma consciência do que é e do que é chamado a ser. No final dessa experiência (30 dias intensivos ou 9 meses exercitando-se, por mais de uma hora cada dia), o exercitante notará em si uma nova sensibilidade que o permitirá encontrar Deus em tudo e todos, fazendo-se um “contemplativo na ação”. Nestes quase 500 anos que já se passaram, são muitos os que experimentam os efeitos positivos desta “mistagogia” que brota dos Exercícios Espirituais.

5. Relação da sua viagem à Terra Santa, em 1523. Documento perdido.

6. Dois breves Diretórios de Exercícios.

7. A Deliberação dos primeiros companheiros,numa reunião tida em Roma, em 1539.

8. A Fórmula do Instituto, documento fundacional da Companhia, apresentado ao Papa Paulo III pelo Cardeal Contarini, no dia 3 de setembro de 1539.

9. Relação da sua eleição como Geral da Companhia e a primeira profissão na basílica de São Paulo Fora dos Muros, no dia 22 de abril de 1541.

10. Deliberação sobre a pobreza, pelo terceiro modo de eleição.

11. Um Diário Espiritual. Só se conserva o que escreveu entre os dias 2 de fevereiro de 1544 a 27 de fevereiro de 1545.

12. Outra obra deste homem iluminado por Deus são as Constituições da Companhia de Jesus. Essa obra, magnífica na sua constituição, é mais uma experiência espiritual do que um manual jurídico ou programático dos jesuítas. Elaboradas nos últimos anos de sua vida (1547-1550), as Constituições são o corpo dado ao Espírito para que faça sua obra por meio dos novos companheiros de Jesus.

13. Diversas Regras.

14. Uma série de cartas e instruções. Ainda se conservam aproximadamente 7.000 delas.

15. A famosa Autobiografia ditada em Roma ao Pe. Gonçalves da Câmara, em 1553 e 1555. Nadal definiu a autobiografia de Inácio como seu “testamento espiritual”. De fato, não há melhor testamento do que a própria vida! O que interessa é “como Deus o dirigiu, desde o início da sua conversão!”Não é fácil dizer como o Senhor nos ajuda nas próprias contradições!...

O texto da Autobiografia teve uma história sofrida. Após a morte de Inácio e entre 1556 e 1567, correram algumas cópias manuscritas e uma tradução, em latim, do texto do Pe. Câmara. Mas, em 1567, Francisco de Borja, terceiro Geral da Companhia, encarregou ao Pe. Ribadeneira escrever uma biografia oficial do santo, proibindo a leitura e divulgação da Autobiografia por considerá-la “inútil e perigosa”. E assim, esse precioso texto ficou aprisionado até 1929, quando foi tirado da sua prolongada quarentena e começou a ser publicado em diversas línguas.

5. Espiritualidade Inaciana. Santo Inácio não condensou sistematicamente em um livro a sua doutrina espiritual, mas essa pode ser deduzida, fundamentalmente, da sua vida e dos seus diversos escritos.


Falemos, primeiro, do "espírito” de santo Inácio para entender melhor a sua “espiritualidade”. O Espírito de Deus, dado a essa pessoa concreta, o fez pai de uma multidão de discípulos e discípulas de Jesus. Este modo de ser e viver é algo concreto e íntimo: vida que só se compreende quando se experimenta e comunica.

O espírito de Inácio é transformante e transformador . Ele chega à medula dos ossos, até o mais profundo do próprio “eu” para resgatá-lo e re-orientá-lo para uma ação abertamente salvífica. Ele é essencialmente "claro". Assim o definia o Pe. Nadal, discípulo privilegiado de Inácio, confidente e seu braço direito: "claritas quaedam occupans ac dirigens", isto é, uma certa clareza que ocupa (a mente liberada) e que dirige (toda ação). Clareza de oração, orientação e ação. Amor liberado de toda afeição ou confusão da razão. Inácio, como um verdadeiro místico, agia sempre “no Senhor”.

O espírito de Inácio é uma aliança da pessoa com Deus. É próprio dos “acordos” fazer-se notar menos que os “desacordos”. Quem rema contracorrente sente mais a correnteza do rio do que aquele que se deixa levar por ela. Inácio decidiu deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus, pela verdade, liberdade e amor. Por isso, apesar de tantas vicissitudes, caminhou livre na paz e na verdadeira humildade.

O Espírito de Inácio é a vontade animada pelo verdadeiro amor . Quando escutamos que alguém tem "espírito de luta”, de trabalho ou, pelo contrário, “espirito de porco” (de contradição) sabemos o que se quer dizer. O “espírito” é uma disposição afetiva atual da vontade em relação a um objeto ou ação empenhada. Esse espírito não se importa com os sacrifícios pessoais experimentados, pois busca interesses e experiências maiores. Evidentemente que aqui nos referimos ao “espírito bom”, que anima para coisas boas. O espírito bom guia nossa vontade pelo e para o amor.

Esse espírito aferrou radicalmente Inácio a Deus. Por isso, a Companhia, seguindo fielmente a Inácio, se apresenta como um caminho para Deus: "via quaedam ad Deum".

Lendo as regras de discernimento dos espíritos nos Exercícios Espirituais, sentimos que “espírito”, para Inácio, é sinônimo de consolação, manifestação afetiva de uma presença divina. As consolações sensíveis são chamadas “espírito” e são espontaneidade afetiva, sensibilidade.A espiritualidade inaciana é, pois, esse modo próprio de ser e viver que tem aqueles e aquelas que experimentara os Exercícios Espirituais.


A espiritualidade inaciana faz com que cada um encontre a sua própria vocação e se aperfeiçoe nela . Assim, o monge beneditino de Montecasino que fez, na quaresma de 1538, junto com o Dr. Ortíz, embaixador de Carlos V, o mês dos Exercícios sob a direção de Santo Inácio, não saiu daquela experiência “meio-jesuíta”, mas um verdadeiro e autêntico beneditino, penetrado da substância de Cassiano, Gregório e Bernardo, mais amante dos ofícios divinos e mais convicto do dinamismo do seu voto de estabilidade, tão caraterístico da Ordem beneditina.

Diante do pluralismo sócio-cultural reinante, a espiritualidade inaciana, tanto para leigos e leigas como para os jesuítas, verdadeiramente teocêntrica, se define com as seguintes características:

Profundo amor pessoal a Jesus Cristo ;

Sensibilidade contemplativa na ação, pois o Deus de Inácio é o Deus que trabalha em todas as coisas;

Serviço , pois as pessoas se sentem servidores da missão de Cristo na Igreja;
Solidariedade com os mais necessitados;

Parceria e colaboração com pessoas de boa vontade;
Apostolado qualificado;

Liberdade operativa, numa santa audácia.

6. Propostas para o Terceiro Milênio. Num mundo cansado, confuso e polarizado, a espiritualidade inaciana se apresenta como síntesedo que há de melhor nas pessoas e nas diversas culturas. Sem medo do futuro e sem prender-se demasiadamente ao passado, tenta viver o presente com liberdade e criatividade, como filhos no Filho e irmãos de todos os homens e mulheres, sem distinção que rompa a fraternidade universal.

Vivemos tempos confusos, onde o trigo e a cizânia se misturam. Nem todo aquele que usa o nome de Jesus tem o seu “espírito”. É preciso discernir-los, para descobrir o Deus vivo que surpreende e desconcerta. Mas, essa descoberta é penosa e cheia de ilusões (projeções). Nem toda experiência aparentemente “religiosa” é de Deus!

Num mundo dicotômico, Inácio nos ensina a perceber a salvação da história . A história de salvação não é paralela a história humana. Todas as pessoas, sem preconceitos de raça, condição social ou religião, estão destinadas a tomar consciência dessa salvação oferecida e acontecida. Somos convidados a viver, na diversidade, o dom da unidade. A salvação não uniformiza, mas diversifica ao máximo. A salvação tocou a vida concreta e condicionada de todos os homens e mulheres do nosso planeta. A graça estimula e não anula. A fé provoca grandes rupturas, mas não destrói nada. Tudo colabora para uma organização maior, para uma globalização, não só da sociedade, mas também da solidariedade.

Estamos entrando numa nova fase da história. O primeiro milênio do cristianismo contemplou o “reinado absoluto de Deus” e, consequentemente, a marginalização do homem. A pompa da liturgia bizantina foi fiel expoente dessa primeira fase. Esse modo de proceder trouxe a morte do homem pelo homem, em nome do Absoluto!

O segundo milênio , seguindo a lei do pêndulo, tentou ser o “reinado absoluto do homem” e, trouxe em conseqüência, a marginalização de Deus. Renascimento, Iluminismo e Modernidade são expoentes desse segundo tempo. Esse modo técnico e puramente científico de encarar a vida trouxe pobreza extrema, violência máxima e a morte do homem pelo homem, em nome da ciência e da razão.

Entra agora o terceiro milênio e nos encontra cansados e desiludidos . Desejamos sínteses que respeitem nossos sonhos, propostas animadoras e não redutoras. Deus não será mais rival do homem, nem o homem terá ciúme de Deus, pois ambos serão parceiros e os melhores companheiros. Essa nova fase, apenas iniciada, convive ainda com os estertores do milênio que finaliza!

A experiência de Inácio de Loyola nos pode iluminar e ajudar. Ele sentiu que a entrada singela no horizonte de Deus não foi apenas um acontecimento numinoso, encantador e efêmero, mas possibilitou o aparecimento de um "novo sujeito", mais verdadeiro, fraterno e gratuito. Inácio rompeu o encantamento da bolha de sabão que o rodeava e se abriu para a realidade histórica e transcendente de Deus, revelado em Jesus Cristo, encontrando um novo sentido à vida. Ele se fez companheiro de Jesus!


Hoje, muitas pessoas, leigos e leigas (CVX, voluntários...), religiosos e religiosas, padres e irmãos jesuítas vivem a espiritualidade inaciana nas mais diversas situações da vida:

No campo científico ou no mundo dos pobres e marginados;

No campo da cultura explícita (Universidades, Colégios, Simpósios, etc...) ou naquele outro mais escondido das paróquias rurais e indígenas;

No apostolado dos Exercícios Espirituais ou na direção espiritual ou confessionário;
No campo imenso dos Meios de Comunicação Social (gráficas, jornais, revistas, rádio, TV...) ou naquele outro das famílias, grupos e movimentos.

Seja como for, o que importa é em tudo, amar e servir. Foi isso que Inácio experimentou e é o que nós, jesuítas e leigos de espiritualidade inaciana, tentamos viver.



Pequena Bibliografia:

A . Rocha Morsch sj. Inácio de Loyola. São Paulo 1993.

André Ravier sj. Inácio de Loyola funda a Companhia de Jesus. São Paulo 1982.

C. de Dalmases sj. Inácio de Loyola. São Paulo 1984.

Dário Pedroso sj. Em tudo amar e servir. Vida de Santo Inácio de Loyola. Braga 1990.

J. C. Dhotel sj. Quem és Inácio de Loyola? São Paulo 1974.

J. Ignácio Tellechea I. Inácio de Loyola. Sozinho e a pé. São Paulo 1991.

K. Rahner e P. Imhof. Inácio de Loyola. São Paulo 1978.

Ricardo Garcia-Villoslada sj. Santo Inácio de Loyola. São Paulo, 1991


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