Texto original de Maria Luísa V. de Paiva Boléo
Não podemos
dizer que a vida de São Martinho «se perde na noite dos tempos», porque este
santo, nascido em território do império romano - Sabaria na antiga Panónia,
hoje Hungria, entre 315 e 317, foi o primeiro santo do Ocidente a ter a sua
biografia escrita por um contemporâneo seu - o escritor Sulpício Severo.
Martinho era filho de um soldado do exército
romano e, como mandava a tradição, filho de militar segue a vida militar, como
filho de mercador é mercador e filho de pescador devia ser pescador. Martinho
estudou em Pavia, para onde a família foi viver, e entrou para o exército com
15 anos, tendo chegado a cavaleiro da guarda imperial.
Tinha a religião dos
seus antepassados, deuses que faziam parte da mitologia dos romanos, deuses
venerados no Império Romano, que, como é óbvio, variavam um pouco de região
para região, dada a imensidão do Império. As Gálias teriam os seus deuses
próprios, como os tinham a Germânia ou a Hispânia.
O jovem
Martinho não estava insensível á religião pregada, três séculos antes, por um
homem bom de Nazaré. Um dia aconteceu um facto que o marcou para toda a vida.
Numa noite fria e chuvosa de Inverno, às portas de Amiens (França), Martinho,
ia a cavalo, provavelmente, no ano de 338, quando viu um pobre com ar miserável
e quase nu, que lhe pediu esmola e Martinho, que não levava consigo qualquer
moeda, num gesto de solidariedade, cortou ao meio a sua capa (clâmide) que
entregou ao mendigo para se agasalhar. Os seus companheiros de armas riram-se
dele, porque ficara com a capa rasgada. Segundo a lenda, de imediato, a chuva
parou e os raios de sol irromperam por entre as nuvens. Sinal do céu. Seria
milagre?
Conta a
lenda, que no dia seguinte Martinho teve uma visão e ouviu uma voz que lhe
disse: «Cada vez que fizeres o bem ao mais pequeno (no sentido social de mais
desprotegido) dos teus irmãos é a mim que o fazes». A partir desse dia Martinho
passa a olhar para os cristãos de outro modo. Recordamos que o Cristianismo
teve dificuldade em se impor como religião, e que um passo importante dado,
nesse sentido, foi por Constantino I, que, em 313, permite que o Catolicismo
seja livremente praticado no Império. Com o tempo foi aceite como religião do
Estado.
Constantino - o Grande - acreditou
que o deus dos cristãos, que ele, de início associava ao Sol, o protegia e que
lhe proporcionara a grande vitória contra Maxêncio, em 312. Acabará senhor
absoluto do Império, tanto a Oriente, como a Ocidente, depois da vitória sobre
Licínio, em 324. Consta que Constantino I terá visto no céu, antes da batalha
com Maxêncio, a frase: «In Hoc Signo Vinces (Por este símbolo, a Cruz de Cristo, vencerás)» e daí o início da sua conversão. A testemunhar essa conversão existe
o Arco de Constantino, em Roma, erigido para celebrar a vitória, onde consta a
frase «por inspiração da Divindade e pela sua (de Constantino) grandeza de
espírito». A testemunhar a sua conversão há o facto de o prefeiro pretoriano da
Hispânia, Acílio Severo, conhecido por Lactâncio ter sido o primeiro prefeito
cristão de Roma, em 326.
Constantino I fundou a cidade de
Constantinopla, onde fez a nova capital do Império, na antiga Bizâncio, e
mandou edificar inúmeras igrejas, para o culto cristão, por todo o Império. A
cidade foi sagrada no ano 330. As mais importantes igrejas foram a basílica de
Latrão, a igreja de São Pedro, em Roma, a igreja do Santo Sepulcro, em
Jerusalém, bem como basílicas em Numídia e em Trèves. Deu-se origem às
fundações da Igreja da Santa Sabedoria (Hagia Sophia), em Constantinopla, que,
viria, em 1453 a ser tomada pelos árabes e Constantinopla passou a chamar-se
Istambul. Constantino I é baptizado no leito de morte, no ano de 337 e
sepultado na basílica dos Apóstolos naquela cidade. Deixa o império dividido
pelos seus três filhos Constantino II, Constâncio e Constante, que vão lutar
entre si ficando senhor do Império Constâncio II.
Depois do encontro de Martinho com
o pobre que seria o próprio Jesus, sente-se um homem novo e é baptizado, na
Páscoa de 337 ou 339. Martinho entende que não pode perseguir os seus irmãos na
fé. Percebe, que os outros são, na realidade, mais seus irmãos que inimigos. Só
tem uma solução - o exílio, porque, oficialmente, só podia sair do exército com
40 anos. Hoje o sentido de irmão está, no Ocidente, perfeitamente
interiorizado, mas, na época era algo de totalmente revolucionário. Era uma
sociedade estratificada, e os grandes senhores, onde se incluía a classe
militar, não se misturavam com a plebe, e muito menos um escravo era considerada
pessoa humana. Daí Cristo ter sido crucificado. O amor entre todos, como irmãos
que pregava era verdadeiramente contra os usos do tempo. Todos o que o seguiram
e praticaram a solidariedade eram vistos como marginais e mais ou menos
perseguidos.
Martinho, ainda militar, mas com uma
dispensa vai ter com Hilário (mais tarde Santo Hilário) a Poitiers. Funda
primeiro o mosteiro de Ligugé e depois o mosteiro de Marmoutier, perto de Tour,
com um seminário. Entretanto a sua fama espalha-se. Muitos homens vão seguir
Martinho e optar pela a vida monástica. Com o tempo, as suas pregações, o seu
exemplo de despojamento e simplicidade, fazem dele um homem considerado santo.
É aclamado bispo de Tours, provavelmente em Julho de 371. Preocupado com a família,
lá longe, e com todo o entusiasmo de um convertido vai à Hungria visitar a
família e converte a mãe.
A vida de São Martinho foi
dedicada à pregação. Como era prática no tempo, mandou destruir templos de
deuses considerados pagãos, introduziu festas religiosas cristãs e defende a
independência da Igreja do poder político, o que era muito avançado para a
época. Nem sempre a sua acção foi bem aceite, daí ter sido repudiado, e, por
vezes, maltratado.
Sulpício Severo,
aristocrata romano, culto e rico fica fascinado com o comportamento pouco comum
de Martinho e escreve, entre 394 e 397 a biografia, daquele que ficaria
conhecido por São Martinho de Tours. A obra chama-se apenas Vita Martini
(escrito em latim), livro que teve enorme repercussão no mundo medieval.
Espalhou-se até Cartago, Alexandria e Síria. Sabe-se que este livro foi
muitíssimo lido (Enciclopedia Cattolica, Cidade do Vaticano, 1952, p. 220), o
que era difícil numa época em que os livros eram caros e quando só o clero e
monarcas mais cultos os leriam, mas o certo é que foi um verdadeiro
«best-seller».
Só em 357 Martinho é dispensado
oficialmente do exército e continua a espalhar a sua fé. Morre em Candes, no
dia 8 de Novembro do ano de 397 e o seu corpo foi acompanhado por 2 000 monges,
muito povo e mulheres devotas. Chega à cidade de Tours no dia 11 de Novembro. O
seu culto começou logo após a sua morte. Em 444 foi elevada uma capela no
local. Não foram só as gentes das Gálias que o veneraram, o seu culto
espalhou-se por todo o Ocidente e parte do Oriente. Na cidade francesa de
Tours, foi erguida uma enorme basílica entre 458 e 489 que viria a ser lugar de
peregrinação, durante séculos. Em França há perto de 300 cidades e povoações
com o nome de São Martinho e, em Portugal, numa breve contagem, descobrimos 60.
É, no entanto, importante frisar que nem todas serão evocações de São Martinho
(o da capa), mas também de São Martinho de Dume (na região de Braga), também
originário da Hungria (séc. VI).
Por toda a Europa os festejos em
honra de São Martinho estão relacionados com cultos da terra, das previsões do
ano agrícola, com festas e canções desejando abundância e, nos países
vinícolas, do Sul da Europa, com o vinho novo e a água-pé. Daí os adágios «Pelo
São Martinho vai à adega e prova o teu vinho» ou «Castanhas e vinho pelo São
Martinho».
Texto
retirado do site O LEME – LINK ORIGINAL:
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